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O monstro e a inocente (+18)

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Ha's Al Ghul 3 days ago
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Chovia. Não parava de chover. Desde o momento em que eu coloquei os pés naquela casa, tudo em volta estava molhado: o chão, as paredes, o teto pingando sobre a minha cabeça, pequenas gotas frias e amarronzadas. E lá estava ela. Ela me olhou como se nunca tivesse conhecido meu pior lado, como se ainda não me conhecesse. A mesma pessoa que sorria, que brincava, que compartilhava dos momentos. Mas que não imaginava o que eu seria capaz de fazer.

Mas eu fiz.

Você não lembra, né? É claro que não. Nunca lembra. Esse é o problema. Sempre esqueceu. Sempre me olhou como se eu fosse seguro, como se eu fosse o único lugar limpo num mundo sujo. Mas eu já estava sujo antes de você me conhecer.

Ela se afastou. Tava com medo. Pela primeira vez, com medo de mim. E eu gostei. Finalmente estava certo. Finalmente, algo fazia sentido. O medo dela encaixava. O medo era coerente com o que eu era. Porque amor, não era.

— Por que você tá assim? — ela perguntou. E nem percebeu que a pergunta era estúpida.

Não respondi. Andei até ela, molhando o chão com as botas. Gotejava de mim. O cheiro da chuva, do suor, do tempo acumulado. Eu não dormia havia dias. Mas minha mente trabalhava. E aquilo que estava preso, aquilo que nunca completei, agora gritava na minha mente.

— Eu pensei que, se eu segurasse, você ia esquecer. Eu pensei que, se eu parasse, você nunca ia saber. E você nunca soube. Só que eu nunca parei. Eu só pausei.

Ela tentou abrir a porta. Eu já tinha trancado.

A janela estava com as dobradiças seladas. Eu fiz isso antes de vir. Eu me preparei. Eu pensei em tudo. Durante anos. Todo dia. Toda noite. Quando sonhava contigo. Quando acordava suando. Quando me tocava, me odiando. Quando chorava e depois ria porque lembrava que você nunca soube. Você nunca soube. Mas eu sabia.

Ela começou a gritar. Mandava eu sair, mandava eu parar. Falava que eu tava doente.

— Eu sei.

Falei isso olhando nos olhos dela.

— Eu sou doente. Eu sempre fui. Eu só nunca deixei ninguém ver.

Ela pegou um vaso. Jogou. Acertou meu ombro. Doeu. Mas não parei. Agarrei o braço dela. A pele quente, viva. As veias pulsavam e isso me deixava tonto. Ela tentou se soltar, eu bati a cabeça dela contra a parede. Uma vez. Duas. Três. Não pra matar. Eu não queria matar. Ainda não.

Ela escorregou até o chão. Chorava.

— Por favor, por favor, eu nunca fiz nada pra você…

— Não. Você nunca fez. Eu fiz. Eu fiz tudo. E agora eu vou continuar. Vou terminar. Porque eu sempre quis. Sempre.

Rasguei a blusa dela com a faca de cozinha. Aquela velha, com gordura no cabo. Usei na noite ada pra cortar carne. Eu nem limpei. Não era simbólico. Eu só não me importava.

Ela gritava. Eu ria. Eu ria porque era tarde demais.

Segurei o rosto dela.

— Olha pra mim. Agora você vai lembrar. Agora vai doer. Agora vai ficar. Porque eu tô cansado de ser o único que carrega essa vontade.

Ela me arranhou, cuspiu na minha cara. Bati nela: no rosto, no peito, na barriga. Ela tossiu sangue, caiu de lado, tentei levantar ela pelos cabelos, ela se debatia. Bati mais. Mais. Até ela parar de se mexer. Até o choro virar um barulho úmido, baixo, engasgado.

Ajoelhei ao lado. Ofegante.

— Eu te amei, mas eu também te quis. E eu sou fraco, eu sou podre, e ninguém nunca me salvou. Ninguém nunca me perdoou, nem eu. Então, hoje, você vai saber quem eu fui esse tempo todo.

— Eu te toquei naquela noite. Você dormia. Eu parei. Eu chorei. Eu me odeio desde então. Mas hoje... hoje não tem mais linha pra segurar.

Arrastei ela até o quarto. Joguei na cama. As roupas rasgadas, a pele marcada. A boca aberta, como se ainda pedisse por socorro.

Ela dizia meu nome. Baixo. Como se estivesse lembrando. Como se uma parte dela estivesse acordando. Isso me fez parar.

Pela primeira vez, parei.

Olhei o corpo dela. Olhei o meu. Me vi na janela. Reflexo manchado de sangue, molhado, tremendo. Parecia outro. E talvez fosse. Talvez eu tivesse deixado de ser eu há muito tempo.

Ela respirava fraco. Mas respirava.

Fui até a cozinha. Peguei outra faca. Não sabia mais o que fazer. Tava preso.

Eu queria morrer.

Mas isso era pouco.

Fui até a porta. Peguei minhas coisas. Abri. A chuva me engoliu.

Fugi.

Com o sangue nas mãos. Com o gosto dela ainda na língua. Com o som do choro preso dentro do crânio.

Fugi porque não dava mais pra ficar.

Mas o que fiz, ficou.

Na cama.

Na carne.

Na história dela.

E eu? Eu continuo andando.

Até quando?

Até o dia que ela lembrar.

Ou até o dia que alguém me parar.

Andei por horas. Talvez dias. O tempo já não existe. A chuva foi ficando pra trás. O frio, não. Ele veio junto. Entrou comigo quando ei pela primeira porta aberta, me abrigando como um cão molhado num lugar que não me pertence.

Deitei no chão duro. Fiquei olhando pro teto, esperando o arrependimento. Mas ele não veio. Não daquele jeito.

Senti a dor. No corpo. Nas mãos. Nas costas. A pancada que levei, os cortes da luta. A dor tava ali. Mas a culpa, não.

Porque eu sabia.

Sabia que ela nunca ia se curar daquilo que não sabia. Que havia uma parte dela que sempre seria cega. Uma parte que precisava ser aberta. Rasgada. Como eu rasguei. Com as mãos, com a faca, com a verdade.

Ela precisava ver. Precisava entender.

E, por mais que tenha chorado, por mais que tenha me amaldiçoado enquanto eu a prendia pelos pulsos, enquanto o sangue dela sujava o colchão, eu vi, nos olhos dela, por um segundo…

Ela entendeu.

Ela viu.

E naquele instante, eu fui Deus.

Um deus doente, eu sei. Mas qual deus não é?

As pessoas rezam pra estátuas, pra imagens pregadas numa cruz. Um homem torturado, cuspido, pregado até morrer, e chamam aquilo de sagrado. Mas, quando é a minha vez de mostrar dor, verdade, carne… aí é monstruoso?

Hipócritas.

Eu sou o que sou.

E o que fiz com ela…

Foi libertação.

Foi cura.

Ela vivia uma mentira.

A mentira de que era amada. De que o mundo era gentil. Que as pessoas só tocam se for com carinho. Eu arranquei essa mentira do corpo dela, como se arranca a pele morta de uma ferida. Ela gritou, sim. Ela sangrou, sim. Mas agora, talvez, ela viva. De verdade.

Me levanto do chão.

Olho minhas mãos. Ainda sujas. Ainda vermelhas.

Me olho no espelho de um banheiro público. Um homem me encara. Um assassino? Não.

Um mártir.

Eu matei o que ela era, pra ela nascer de novo.

Agora ela sabe.

Agora ela lembra.

Agora ela nunca mais será enganada.

Talvez esteja em um hospital agora. Talvez esteja sendo examinada, costurada, limpa. Eles vão tentar convencer ela de que é vítima. Vão dopá-la, vão colocar palavras na boca dela. Vão dizer que ela sofreu. Mas, no fundo, no silêncio, quando estiver sozinha, ela vai lembrar de mim.

Vai lembrar do que eu disse:

— “Eu fiz isso porque te amo. Porque você precisava.”

E vai odiar isso.

Vai me odiar.

Mas vai saber.

E saber é o começo de tudo.

O monstro e a inocente (+18)-[C]

[C]
[C]Chovia. Não parava de chover. Desde o momento em que eu coloquei os pés naquela casa
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