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Em todo o caos há um cosmos, em toda a desordem uma ordem secreta.
– Carl Jung
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⓶̸ ◟ㅤ Flow ฅ /ᐠ. .ᐟ\ ฅㅤ ̟ 𓋱 ㅤ𝆫ㅤ
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Findar ciclos é um ato que exige coragem, embora doloroso, diante da inexorável agem do tempo. É reconhecer que todo início já carrega consigo a sombra de um fim. O término, por mais que nos machuque, é a única certeza que nos torna verdadeiramente humanos. Heráclito já nos alertava: "Nada é permanente, exceto a mudança." A monotonia, essa linha reta que atravessa nossos dias, reflete o mundo ao nosso redor. Rostos se transformam, relacionamentos evoluem, sentimentos se alteram, perspectivas mudam, lugares se metamorfoseiam, mas o enredo continua sendo o mesmo: ciclos de começos, meios e fins que se repetem, como se estivéssemos condenados a um retorno eterno. Nietzsche, em suas reflexões, questionava: "E se um dia ou uma noite um demônio te dissesse que esta vida, tal como a viveste, teria de ser vivida por ti inúmeras vezes? Não te lançarias ao chão, rangendo os dentes?" Tudo se desmancha, tudo escorrega entre os dedos. A ideia de permanência é uma ilusão que criamos para apaziguar nossa inquietação e o sofrimento que surge da transitoriedade. Tentamos erguer monumentos contra o esquecimento, mas o vento, implacável, desgasta até os mais sólidos dos mármores. Contudo, como disse Fernando Pessoa: "Tudo vale a pena se a alma não é pequena." O amor é valioso, mesmo quando chega ao fim, mesmo quando causa dor, justamente devido à maneira única como amamos e dos momentos especiais que, em um piscar de olhos, se transformam em meras recordações ao longo do tempo. Encerrar ciclos é compreender que a vida não se resume a conquistas, mas a despedidas. Abandonamos o que amamos, quem fomos e os sonhos que almejamos. E no vazio que permanece, percebemos o movimento incessante da vida, como ondas que quebram na areia, indiferentes à nossa dor. Talvez a monotonia não seja uma inimiga, mas um lembrete de que tudo é ageiro. Pois é na fragilidade da impermanência que reside a beleza do momento presente. O eterno, afinal, é frio e desprovido de cor. Camus nos ensina: "No meio do inverno, descobri em mim um verão invencível." Somente o que é efêmero pulsa com a intensidade de quem reconhece que, um dia, também se apagará. E até o que é ageiro pode se tornar eterno, nem que seja somente na memória.
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Flow configura-se em um mundo submerso, um verdadeiro dilúvio de proporções épicas, reminiscentes das narrativas bíblicas. À medida que as águas se elevam, consumindo a imensa estátua de um gato e quase levando nosso protagonista felino sem nome, não podemos deixar de imaginar Noé enfrentando aquelas ondas em sua arca. Embora isso não ocorra no filme, uma situação semelhante se desenrola. Enquanto o gato observa a fúria das ondas, ele avista um barco se aproximando — um sinal de esperança. Não é um mensageiro divino que vem em seu socorro, mas uma capivara navegando. Assim começa a aventura de Flow e a jornada do gato. Ele a do isolamento e do medo para a descoberta de uma comunidade e do reconhecimento. O reconhecimento — e sua contraparte, a reflexão — é a essência de Flow. O filme está repleto de momentos que provocam reflexão, levando ao reconhecimento dessa introspecção. Ao longo da narrativa, o gato se enxerga refletido de diferentes maneiras, seja na superfície da água, nas estátuas de gato ou nas ilustrações que aparecem no início. Dois momentos cruciais de reflexão e reconhecimento marcam a trama. O primeiro envolve um lêmure e um espelho, enquanto o segundo se desdobra na cena final. Durante o filme, o lêmure se torna obcecado por coletar objetos e armazená-los em uma cesta. Em certo momento, ele se depara com um espelho, estabelecendo uma conexão profunda e segurando-o com firmeza. Após a inundação, o lêmure se senta em um (quase) trono ao lado de seus companheiros, todos encarando o espelho e seus próprios reflexos. O gato, ao encontrá-los, chama seu amigo lêmure para acompanhá-lo. Inicialmente, o lêmure ignora o gato, preso à sua imagem no espelho. No entanto, após uma reflexão, ele decide seguir o gato. O segundo momento de reflexão ocorre após eles resgatarem seus amigos de um barco à beira de um penhasco. Com todos a salvo, o gato encontra uma baleia lendária encalhada, uma figura que apareceu ao longo do filme e que até mesmo salvou o gato em um momento crítico. No clímax do filme, o gato observa a baleia morrer. Em um instante de profunda tristeza, ele se senta sozinho, olhando para uma poça d'água, tentando processar a perda. Inicialmente, vemos somente seu reflexo, mas logo seus amigos — a capivara, o lêmure e o cachorro — juntam-se a ele. Eles se inclinam, oferecendo apoio, enquanto a tela escurece e os créditos começam a rolar. Fica evidente que o filme explora a temática da reflexão, que pode ser vista como um tema de reconhecimento. Mas o que isso realmente representa? Flow nos ensina que o reconhecimento se dá através da reflexão; em essência, somos humanos porque nos reconhecemos. O filme incorpora a filosofia Bantu do Ubuntu: "Eu sou porque nós somos". Esse conceito propõe que o reconhecimento de si mesmo não ocorre através do eu, mas sim por meio do outro. Nessa perspectiva, esse reconhecimento implica uma responsabilidade de cuidado com o próximo, pois a existência do eu está intrinsecamente ligada à do outro. Essa visão entra em conflito com a filosofia ocidental defendida por René Descartes: "Dubito, ergo cogito, ergo sum" — ou "Eu duvido, logo penso, logo existo". Descartes argumenta que não podemos confiar em nossos sentidos, pois podem nos enganar. Se não podemos confiar neles, como podemos ter certeza de que somos reais e não apenas uma ilusão? Para Descartes, a capacidade de duvidar é a prova da existência, uma filosofia direta, mas limitada. A película desafia essa noção cartesiana. O filme explora o poder do reconhecimento, enfatizando que a verdadeira identidade e existência emergem através do reconhecimento do outro. Enquanto concorda que o eu se revela no reconhecimento, a obra argumenta que a visão cartesiana é superficial, reduzindo o reconhecimento a um mero reflexo — uma imagem distorcida e rasa. A narrativa desafia a premissa de Descartes através de seu protagonista, o gato. Tradicionalmente vistos como seres solitários, é poderoso que o gato encontre seu verdadeiro eu no reconhecimento do outro. O que, então, está em jogo na crítica à ideia de "Dubito, ergo cogito, ergo sum"? Para responder a essa pergunta, é necessário explorar a natureza do self.
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A identidade que você possui só pode existir em relação a outra pessoa. Um ser humano não surge isoladamente. Não se desenvolve por conta própria. Logo, não tem o poder de formular pensamentos de maneira autônoma. As expressões que Descartes utilizou para se definir tiveram uma origem. Além disso, os conceitos que ele empregou vieram de algum lugar. Como exemplo, os alimentos que consome, a água que bebe, o ar que respira, o solo sob seus pés; tudo isso tem uma procedência. Os sapatos que calça, as roupas que veste, tudo isso também tem uma origem; os utensílios que utiliza para se alimentar, os dentes que emprega para mastigar, até os ácidos em seu estômago para a digestão, tudo é parte de uma rede maior. Estamos intrinsecamente ligados ao mundo ao nosso redor; não podemos nos desvincular dele. Descartes é um dos primeiros teóricos da simulação. Assim como Zhuangzi em sua famosa narrativa do "Sonho da Borboleta", Descartes questionava se estávamos, naquele momento, sonhando. Ele argumentava que nossos sentidos poderiam nos enganar; portanto, não podíamos confiar neles para compreender — e muito menos perceber — a realidade. Assim, se os sentidos são duvidosos, nada pode ser considerado confiável. Tudo pode ser uma ilusão, e nada pode ser real. A teoria da simulação pode ser assustadora, mas sua clareza é uma ilusão. Ela pera os campos filosóficos de pensadores desatentos. É uma nova roupagem do niilismo, filtrada pelo tecno-deísmo, que busca criar uma nova visão da realidade: uma realidade superficial, repleta de vazio e sem significado. Essa teoria possui diversas variações, desde as mais pessimistas até as que oferecem uma leve afirmação da vida. No entanto, todas falham devido a um problema central. Os defensores da simulação tendem a acreditar que somos entidades separadas do mundo. Eles sustentam que o "eu" existe independentemente da realidade material. Contudo, essa externalização do "eu" é uma ilusão. É uma falsa percepção. Tende-se a crer que, ao conseguirmos exteriorizar nossos pensamentos (e projetá-los além do presente), estamos de alguma forma apartados do ambiente em que vivemos. O raciocínio que advoga que, devido a essa capacidade, podemos ter certeza da existência do mundo, é falho. Para contestar essa suposição da incerteza da realidade, não é necessário explicar por que borboletas não podem sonhar. Essa explicação não responderia à sua dúvida, pois elas poderiam simplesmente refutar a ideia de simulação ou a concepção cartesiana de que nossos sentidos são falhos.
Em vez disso, a maneira de desafiar a premissa da incerteza dos sentidos é afirmar que não podemos discernir o que é verdadeiro: sonhos ou realidade. Ou seja, se nossos sentidos são duvidosos, por que devemos acreditar que são falsos? Zhuangzi argumenta que a separação entre sonhos e realidade é uma dicotomia enganosa e, portanto, não podemos determinar qual é a verdadeira. Ele está correto, mas se é uma falsa dicotomia, isso torna ambas as suposições igualmente questionáveis. Por que desconsiderar os sentidos é mais válido do que aceitá-los? Proponho que a resposta à teoria da simulação reside na filosofia Bantu do Ubuntu: “Eu sou porque nós somos”. Ubuntu não nega a perspectiva cartesiana da insegurança dos sentidos. Em vez disso, argumenta que podemos confiar em nossas percepções porque existem outras pessoas para validar o que nossos sentidos nos informam. Sabemos que são verdadeiras porque não estamos sós. Não pode haver existência sem uma conexão profunda com o mundo e com os outros. É preciso compreender que cada um só pode existir no momento presente. Você só pode sentir o chão sob seus pés agora. Só pode perceber a água subindo neste instante e tocá-la apenas nesse momento. Você só pode ver os peixes que estão diante de você. E se desejar pescá-los, deve estar presente com eles. Ao observar o mundo como ele realmente é e reconhecer que você não pode existir em outro tempo ou lugar a não ser no exato momento presente, começa a perceber o outro dentro de si: os ossos que habitam nosso corpo, os músculos que os envolvem, a pele que cobre a carne, as roupas que nos vestem e o ar que nos rodeia; os sons que ouvimos e os aromas que sentimos. Todos são parte de nós. Estamos todos interligados. É comum pensarmos que somos independentes, que de alguma forma não estamos conectados ao todo, aos outros. Mas essa crença é errônea.
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Estamos todos interligados por laços invisíveis, como partículas que dançam em harmonia. Muitas vezes, pensamos que a água nos separa, sendo um elemento isolante que nos afasta da terra e do mundo ao nosso redor. No entanto, na obra, a água desempenha um papel totalmente oposto. Ela é o fio que une tudo e todos. A água não somente reúne nosso elenco de personagens animais, forçando-os a se unirem em um barco, mas também conecta tudo por sua própria natureza intrínseca. Quando você toca a água, está tocando tudo o que ela toca. Ela é a força que impulsiona esses animais a se unirem, a se reconhecerem e a se encontrarem. Antes de se encontrarem, cada um deles estava sozinho. O gato havia perdido seu dono e se sentia solitário. A capivara começou sua jornada em solidão. O lêmure buscava validação em seu reflexo, acreditando que, assim como Descartes, ele se encontraria em si. Mas o que ele encontrou foi somente um eco vazio de sua própria imagem. Somente ao se conectar com o outro, o lêmure encontrou uma verdadeira relação. O cachorro, abandonado pelos seus pares, percebeu que eles estavam mais preocupados consigo mesmos, à semelhança de Descartes. E então, temos o pássaro-secretário. Esse pássaro buscou se reconhecer nos outros, rejeitando a perspectiva cartesiana de "dubito, ergo cogito, ergo sum". Ele se voltou para a filosofia bantu do Ubuntu, que valoriza o reconhecimento do outro, do diferente. Nesse reconhecimento, ele encontrou sua própria identidade. Contudo, essa escolha o levou a ser rejeitado e expulso pelos outros pássaros-secretários. O pássaro-secretário ilustra a solidão inerente à filosofia cartesiana e o desafio que a filosofia Ubuntu propõe.
A filosofia Ubuntu não nos diz para encontrar grupos com os quais nos identificar, mas nos incita a nos conectar com todos à nossa volta. Não existe um "você e seu grupo" ou "você e você mesmo", mas sim um "você e todos". Para o Ubuntu, a identidade do "eu" só se concretiza na presença do outro. Sem esse "outro", esse "nós", o "eu" não pode existir. Devemos reconhecer o outro, e ao fazê-lo, assumimos a responsabilidade de cuidar dele. Em resumo, dado que o "eu" só existe em relação ao outro, devemos garantir que o outro viva. Se o outro desaparece, o "eu" também deixa de existir. O pássaro-secretário se conecta com o gato, e o gato se descobre por meio dessa relação. Em um momento, o pássaro-secretário alça voo, e o gato decide segui-lo. O gato escala uma montanha e, no topo, encontra o pássaro-secretário. Eles se encaram enquanto a gravidade parece inverter, e lentamente sobem ao céu, cercados por bolhas de água flutuantes. O pássaro-secretário continua sua ascensão, mas o gato permanece na montanha. Em dado momento, o pássaro-secretário desaparece e o gato cai, ficando sozinho. Esse é um instante crucial, pois é aqui que o gato aprende a rejeitar a filosofia cartesiana e a adotar a visão Bantu do Ubuntu. O pássaro-secretário precisou partir para que essa lição fosse ensinada ao gato. A água simboliza aquilo que nos conecta, enquanto o pássaro-secretário representa a rejeição da visão cartesiana. Sua partida provoca uma mudança, não porque as águas demandam um sacrifício, mas porque nunca foram uma ameaça. As águas estão aqui para ensinar ao gato sobre conexão e reconhecimento. Considere o único sonho do gato: ele imagina uma manada de veados se aproximando, antes que a água desça como uma avalanche, levando tudo embora e o despertando. Este sonho simboliza a solidão da filosofia cartesiana, representada por um grupo interno que gira em torno de si mesmo, sem propósito além da repetição do reconhecimento egoísta. A água é o Ubuntu vindo para desmantelar essa insularidade cartesiana e, com isso, destruir as certezas que o gato acreditava ter. O gato precisa aprender a se conectar e a reconhecer, e essa lição deve ser aprendida por meio de uma inundação. É por isso que os humanos estão ausentes do filme. A ausência deles reflete o resultado de uma visão cartesiana do mundo, na qual a fragmentação é tão extrema que já não conseguimos nos ver. Nós não existimos mais uns para os outros, e a água é necessária para nos reconectar. Quando o pássaro-secretário abandona Descartes e abraça o Ubuntu, ele é levado, pois a conexão finalmente retorna.
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As estátuas de gatos representam uma busca humana por conexão. Essas figuras felinas simbolizam o anseio por laços afetivos, embora os gatos sejam conhecidos por sua natureza solitária. No filme Flow, o gato inicialmente acredita que sua única conexão é consigo mesmo, mas ao se voltar para dentro, acaba somente se redescobrindo. No início da narrativa, ele vê seu mundo, que pensava conhecer, sendo submerso pela água. A conexão estava à sua porta, mas ele não conseguia reconhecê-la. A água surge, destruindo a familiaridade que pensava ter. No começo, um cachorro tenta tirá-los de sua visão limitada, mas o gato resiste, optando por um isolamento ainda maior. Ele acaba subindo em uma gigantesca estátua de si, na esperança de que essa imponente representação o salve. O gato acredita que uma compreensão completa de si o protegerá da catástrofe iminente, mas essa esperança é em vão. Ele não pode se salvar apenas por meio do autoconhecimento; não pode ignorar a necessidade de conexão com os outros. À medida que as águas continuam a subir, ele tenta escapar, mas a inevitabilidade se aproxima. O gato não pode eludir o reconhecimento, nem a conexão com o outro. O enredo desafia o gato a interagir com os demais, e esse desafio se estende a nós. A obra nos obriga a compreender e a enxergar o outro, a perceber que a verdadeira identidade é moldada pela relação com o próximo. Afirmamos nossa existência através do outro: eu sou porque nós somos. Agora, voltemo-nos para a baleia. Essa criatura é um símbolo de comunidade. Embora exista a ideia de que as baleias sejam solitárias, na verdade, sua conexão com os outros é intensa e significativa. Não é descabido sugerir que as baleias poderiam ter sua própria espiritualidade. Mesmo que não haja provas concretas de que elas possuam crenças, é uma ideia fascinante. Talvez sua fé resida na conexão entre elas mesmas, e é por isso que cantam. Elas compartilham suas crenças por meio de canções. No cinema, a água frequentemente simboliza conexão e fé, assim como em "A Árvore da Vida", de Terrence Malick. A água representa a vida, e a fé é a manifestação dessa vida. O significado da vida e da fé reside em nossa escolha de reconhecer o outro dia após dia. É essa essência vital, essa água da fé, que ressoa na obra. Ao testemunharmos a morte de uma baleia no final do filme, somos levados a refletir sobre a morte de um deus. Com a morte de Deus — como na era do Iluminismo e nas reflexões de Descartes e Sartre —, acreditamos erroneamente que restamos somente nós mesmos. No entanto, ao olharmos para as águas da fé, inicialmente vemos apenas nosso próprio reflexo. Mas o que emerge atrás de nós? O outro. E, em um momento tocante após os créditos, avistamos o oceano. O que surge dele? A baleia. Deus não morreu. A fé não desapareceu. Ressuscitamos a fé não por meio de crenças individuais, mas pela crença mútua, pelo reconhecimento que temos uns dos outros.
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Finalizando por aqui. Flow é uma daquelas obras raras que ultraam a necessidade de falas, comunicando-se diretamente com a essência do espectador. Com visuais deslumbrantes e uma narrativa que emana humanidade em um cenário desprovido de seres humanos, a obra demonstra o poder do cinema em transmitir histórias universais. A jornada do gato é tanto física quanto simbólica: ele precisa deixar a segurança de sua ilha, adornada por monumentos em ruínas e relíquias submersas, e embarcar em uma odisseia de colaboração e autoconhecimento. Acompanhar o felino em sua travessia é uma experiência meditativa e visualmente cativante, com Zilbalodis apresentando sequências que oscilam entre a serenidade introspectiva e momentos de genuína tensão. Ao longo do seu desenvolvimento, o filme adota uma simplicidade reminiscente de fábulas clássicas. A metáfora central, a necessidade de deixar de lado o ego em prol da coletividade, é habilmente entrelaçada ao longo da trama. À medida que outros animais se juntam ao gato em sua embarcação, incluindo uma capivara sonolenta, um labrador otimista e um lêmure inquieto, a jornada se transforma em uma exploração da convivência. Cada personagem é animado de maneira a refletir suas características únicas, desde a curiosidade aguçada do gato até a presença imponente do pássaro. Suas interações, desde gestos delicados como o compartilhamento de alimento até momentos de conflito, constituem o cerne emocional da narrativa. Em última análise, Flow é uma reflexão sobre nossa relação com o mundo natural e entre nós. Silencioso, o filme revela a importância de nos reconhecermos como parte de algo maior, aceitando que nosso impacto no mundo é moldado pelas nossas interações com ele e com aqueles ao nosso redor. Em um futuro incerto repleto de crises climáticas e desafios existenciais, a trama traz uma mensagem de esperança: a vida continua, adaptando-se e fluindo como um rio que abre novos caminhos entre as pedras. Obrigada por lerem!
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ᥤᥱຣː 𓂃 ⋆ ࣪. ᓚᘏᗢ





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O próximo nada mais é do que o espelho do teu ser
Ui
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