O som que ainda pulsa (+16)

Eu acordo com o som da carne estalando.

É sempre o mesmo som: como quando se abre um fruto podre e o bicho pula primeiro.

As pessoas dizem que estou doente, mas eu sei... eu sei o que eu sou.

O que eu faço.

O que eu toco.

Toquei minha mãe pela última vez quando ela ainda tremia.

Ela ainda me amava.

Talvez.

Ou me temia.

A diferença é estética.

Ela nunca entendeu a minha música.

Tocava o piano como se os dedos fossem ossos quebrados pedindo perdão.

Eu não. Eu toco com tendões. Com unhas sujas. Com pele colada em tecla.

A primeira sinfonia foi com os miúdos do meu cão.

Era um teste.

Quando ele morreu, me olhou como se pedisse pra não ser só silêncio.

Então fiz dele um tambor.

O som era quente.

Quente.

Quente.

Eu sou puro. Justamente porque aceito o impuro.

Deus não mora onde é limpo.

Deus mora no canto do pulmão que já apodreceu, mas insiste em respirar.

Na lágrima que escorre enquanto se goza.

No gosto do sêmen no final de uma oração.

Eu construí meu altar com os dentes de quem duvidou.

Cimento de ossos moídos.

Tinta de pus.

As pessoas falam em beleza.

Mas beleza é um tumor que sorri.

Toquei na missa.

Minha mãe já estava... espalhada.

Fiz um violoncelo com as vértebras.

O som era grave. Chorava.

No lugar de fiéis, espelhos.

Cada nota, um reflexo.

Cada melodia, uma lembrança de quando ainda não sabiam o que eu era.

Ou talvez sempre souberam. Só fecharam os olhos.

Eu toquei até sangrar dos ouvidos.

Às vezes escuto ela me responder.

Ela me pede pra parar.

Ou pra continuar.

É difícil saber, quando a língua já é só membrana ressecada.

Mas o som...

O som é verdade.

Eu sou músico.

Eu sou filho.

Eu sou o corpo e o sangue.

E você, que lê isso agora, está me ouvindo.

Porque tudo que eu toco ainda pulsa.

Tudo que matei ainda canta.

E minha próxima obra...

Vai ser com você.