![3: Não podia ser você — Retalhos de Nós-[IMG=DHF]
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— Tô saindo! — Kássia avisou às pressas, enquanto descia a escad](https://image.staticox.com/?url=http%3A%2F%2Fpm1.aminoapps.vertvonline.info%2F8748%2F497f5d66c07d0efb99931d8ea9572f6d42f44368r1-1200-1200v2_hq.jpg)
— Tô saindo! — Kássia avisou às pressas, enquanto descia a escadaria da casa correndo só de meias.
Os olhos de Elena subiram da tela do computador para observá-la ando pelo arco da cozinha.
— Boa aula. Se comporte! — replicou a mais velha.
Kássia não a ouviu — os fones estavam no máximo, e o grave da música pulsava em seus ouvidos. Assim que terminou de calçar os tênis, inclinou o corpo para trás e espiou a tia. Elena estava concentrada no computador, rolando o mouse incessantemente e erguendo uma xícara de café. Provavelmente reorganizando a agenda de novo.
Kássia voltou a atenção para a saída, ajeitou a mochila preta nos ombros e empurrou a porta da frente. A manhã estava quente, e o sopro do vento a surpreendeu assim que cruzou a soleira. Abaixou-se para dobrar um pouco as calças e aliviar o abafado; a mochila quase escorregou, mas ela a segurou com agilidade.
Do lado de fora, lançou um olhar rápido pela vizinhança e ergueu o braço para cumprimentar um homem da casa ao lado. Ele aguava a grama com um cigarro preso entre os lábios e acenou de volta. Kássia sorriu, conferiu o relógio digital no pulso e concluiu que, mais uma vez, provavelmente chegaria atrasada à escola.
Ela começou a caminhar pela calçada, ao o que a música em seus ouvidos mudava para um chillhop¹, que a fez murmurar junto ao ritmo e aproveitar o ambiente ao redor. O tempo estava seco, e não havia vento firme ando. Sentindo o calor em sua nuca esquentar devido aos fios cacheados coloridos e rebeldes, ela buscou uma xuxa para amarrar o cabelo.
O percurso da sua casa até a escola durava cerca de trinta e cinco minutos a pé. E ela ou por ele sem pressa, observando as casas, prédios e comércios como alguém que observa apenas uma tela de televisão no mudo.
Virando uma esquina, ao longe, um poste estendia um pequeno outdoor com o nome da instituição. Pela distância não era possível ler, mas como estudava lá há anos, reconhecia a silhueta de longe.
Aproximando-se, viu, frente às muretas do colégio, o seu amigo Diogo com a bunda apoiada, enquanto digitava ferozmente no celular. Ele a reconheceu de longe e levantou os olhos do celular, abrindo os braços como se ela não o tivesse visto ainda — mesmo já tendo visto que ela o notara — mas isso pouco importava.
Kássia não se apressou até ele também, vendo a expressão dele se azedar rapidamente. Quando ela esticou a mão para cumprimentá-lo com um aperto de mão, ele a abraçou de lado diretamente e começou a puxá-la para dentro da escola. Mesmo que estivessem atrasados, não era algo que eles se importavam nessa altura do campeonato — afinal, estavam atrasados, mas não haviam extrapolado o tempo limite.
— Lembra da novata? Aparentemente ela apareceu hoje. Viram ela dando eio com aquele lá — ele comentou, como quem conta um segredo.
Kássia ergueu a sobrancelha para ele, em dúvida.
— Sim, e o que que tem?
— Duas semanas depois do começo das aulas, Kas! Porra, não é normal faltar o primeiro dia em uma nova escola, okay!? — ele respondeu, firme.
Kássia não parecia convencida, ainda com sua expressão de dúvida. Eles caminharam para subir as escadas do segundo prédio após a entrada dos portões.
— Faltando às aulas assim, como quem não tá nem aí, ela com certeza é um problema!
Kássia revirou os olhos.
— Quando você faltar, vou chamar a polícia, tamanho crime que cometestes, oh, soberano das trevas.
Diogo fez um beiço, sentindo-se injustiçado, e beliscou a amiga nas costelas.
— Pô, coopera com a fofoca — reclamou.
Kássia o olhou de lado e pausou os os antes que ficassem frente a porta da sala, que tinha uma janela de vidro nela.
— Tá... mas e aí, ela é bonita? — perguntou, sorrindo de lado.
Diogo riu e deu de ombros — também não fazia ideia.
Ele espiou pela janela da porta, onde a professora apontava para uma aluna em pé. Virou-se e piscou para Kássia com um sorriso maroto.
— Acho que a gente vai ter que descobrir.
Ela viu que Diogo travou o olhar em algum ponto da sala, então puxou o caderno da mochila e o abriu de qualquer jeito — precisava fingir que estava ocupada. Ao seu lado, Diogo balançou a cabeça em reprovação e empurrou a porta.
— Olá, err... — uma voz feminina doce preencheu o ar.
Kássia, que queria enganar a professora fingindo que estava estudando de manhã e, por isso, perdeu o horário, congelou ao ouvir aquela voz. Ela ergueu os olhos chocados para Diogo que já atravessava o batente.
Seus ouvidos ainda podiam estar errados, é claro.
— Me chamo Myllena, e... bem, é isso — concluiu, um pouco sem jeito.
Ouvindo aquilo, Kássia deu alguns os truncados, acabando por quase atropelar Diogo. O barulho chamou a atenção de todos na sala e da professora, que miraram na porta.
Os olhos de Kássia encontraram os de Myllena — e por um instante, o tempo pareceu pausar.
— Dessa vez foi um velório, um resgate ou o cachorro que comeu o uniforme? Quero ver qual é a desculpa de hoje — a mulher nos seus cinquenta anos disse.
Diogo sorriu sem graça.
— A senhora não sabe a nova? Saiu uma pesquisa que diz que o relógio é inimigo dos estudantes. Realmente trágico que sofremos disso — ele disse.
Alguns colegas de classe riram e criticaram, mas a professora, derrotada, apenas mandou todos sentarem, no final. Kássia assentiu em silêncio, apertando o caderno nos braços e seguindo atrás de Diogo.
Foi possível ver que Myllena havia estendido o braço para segurar a outra jovem enquanto ava, mas Kássia se esquivou sutilmente, sem sequer olhá-la nos olhos. Embora tenha sido um momento pequeno, olhos atentos de adolescentes famintos por fofocas não deixaram isso ar.
— Myllena, há um lugar vago ao lado do seu colega Luís, ali do outro lado — a professora disse, chamando sua atenção e a removendo do transe.
— Ah, sim — ela respondeu timidamente.
Myllena Barroso atravessou a sala, sorrindo, como quem pede desculpas depois de fazer uma bagunça. As pessoas ao redor da sua cadeira a receberam. Já Kássia sentou numa carteira frente a de Diogo, na fileira junto à parede, duas cadeiras atrás da primeira carteira.
Kássia, sem perceber, se encolheu, sentindo o peito estufado e a mente estranha, como quem acaba de engolir veneno.
— Bem — Diogo se sentou, puxando o material com agilidade, enquanto ainda estava um pouco inclinado para a frente. Alguns alunos da turma ainda zuniam conversas, a professora ava a escrever no quadro verde — Ela não é bem feia, mas também não é bem gostosa, gostosaaaa.
Ele espiava em direção a novata. Myllena não parecia estar usando maquiagem, também não estava usando órios — nem brincos, nem colares e nem pulseiras. A mochila era bege, assim como a calça que usava. A calça acabava antes de cobrir a meia, que era rosa, os tênis eram brancos. A camisa do uniforme parecia ter sido colocada de qualquer jeito. Na visão de Diogo, ela também parecia retraída.
Diogo observava em silêncio, como quem procura entender uma equação difícil. Até que viu ela sorrir, prender o cabelo ondulado e castanho em um coque frouxo. Ele balançou a cabeça, voltando para cutucar Kássia com a ponta da caneta.
— Ela é pelo menos fofa — ele disse, depois de suspirar. — O que você me diz?
Invés de respondê-lo, impaciente, Kássia soltou um "shii" violento. Sua ação fez metade da sala cair em silêncio, até que a professora virou os olhos em sua direção.
— Obrigado pelo apoio, Kássia, mas isso não muda o fato de que você não chegou no horário certo.
Kássia pediu desculpas de forma polida, ajeitando o caderno pela terceira vez e pegando uma caneta para escrever. Ela percebeu que sua mão tremia.
Esperando o momento oportuno, depois de uma breve explicação da professora de biologia, Diogo inclinou-se de novo.
— Que porra? Que bixo te mordeu? O santo não bateu? — ele tagarelou.
Kássia bufou e revirou os olhos, virando-se para olhá-lo.
— Man, namoral, se concentra — ela respondeu.
Eles dois trocaram um olhar cúmplice. Diogo dizia: "o que tem de errado?", mas Kássia dizia: "vá cagar e me deixe em paz". Ele não entendeu, mas resolveu ficar quieto quando um giz voou em sua direção, depois que a surpresa ou, ele sorriu inocente.
— Eu tava perguntando uma coisa que não entendi, foi mal ae — se justificou.
— Na próxima você pode perguntar para mim, que sou a professora, não acha? — ela rebateu, sorrindo amarga.
Diogo fez uma imagem de zíper com a mão e recostou-se na cadeira, derrotado.
Kássia não prestou atenção nele. Na verdade, ela não prestou atenção em coisa alguma, sua mente fervilhando e o medo irracional fazendo seu coração acelerar sozinho no peito.
"Por que ela está aqui? Ela tentou me puxar agora há pouco? O que ela quer? Será que tá me olhando? Será que vai espalhar alguma coisa?", ao mesmo tempo que se repreendia. "Não importa. Ela não importa. Não tem como ela estragar as coisas aqui, eu não sou mais aquela pessoa. Eu também não estou mais inocente. Se ela mexer comigo, ela vai ver."
Ela rasurou a folha com o esboço de um nome quando deu por si, arranhando a folha para cobrir e a rasgando depois, para começar tudo de novo. Seu transtorno não ou despercebido pelo seu amigo. Porém, ela não podia se importar menos.
De todas as pessoas daquele maldito lugar, a que menos poderia ver... Não, a que menos queria ver. A que definitivamente não deveria ver era ela, Myllena Barroso.
-------------- notas
1. "Chillhop": é uma junção de "chill", relaxar, com "hip-hop". É um subgênero de música eletrônica conhecido por sua atmosfera calma e relaxante.
:copyright: JrHanyou :copyright: JrOkean
Comments (4)
Este Diogo é literalmente eu. A poeira na memória de Kassia foi limpa com os os calmos e voz lisa de Mylena, fazendo o cabelo cacheado se arrepiar fortemente e lembra-lá da decepção e arrependimento que ocorreu em tempos tempestuosos.
Eu tô gostando muito, irei ler mais hoje a tarde. :penguin: :lollipop:
Gostei dessa descrição, ficou braba.
Obrigado por ler e comentar :heart: .