Não espere nada leve daqui, cuidado...
Comecei pela coxa. Era o lugar mais macio, mais seguro. Usei a faca de serra não por falta de opção, mas porque queria que doesse. A lâmina entrou arrastada, rasgando pele e gordura como se abrisse uma carta antiga. O som era abafado, úmido, um chiado de carne se separando. O sangue jorrou devagar no começo, como se hesitasse, depois veio com força, quente, pulsando no ritmo do meu desespero. Desenhei com o dedo a primeira letra na parede do banheiro. A mais branca que achei.
Naquele dia, eu só queria entender se dava pra escrever com o corpo. Só isso. Curiosidade idiota. Mas quando vi aquela mancha vermelha se formar, senti alguma coisa... viva. A frase saiu sozinha: “Sou meu próprio papel.”
Depois disso, fui testando materiais. A primeira vez que escrevi com sêmen foi num poema de amor. Masturbei em pé, encarando o espelho. Não fechei os olhos. Queria que o reflexo me visse. Quando gozei, a primeira gota caiu no chão, mas o resto recolhi com a palma. Espalhei na folha como se fosse tinta dourada, pegajosa, brilhando sob a luz fraca. O cheiro misturado de suor, desejo e vergonha impregnava tudo.
Merda não era fácil, mas era necessária. Era a matéria-prima mais honesta. Sentei na privada e forcei a evacuação. A barriga doía, os espasmos vinham como contrações. Caguei numa bacia de plástico, com as mãos enluvadas em sacolas de mercado. Mexi a massa com os dedos, dissolvendo, até virar uma pasta densa. ei direto na parede, com as mãos nuas. Ela era morna, mole, penetrava na pele as letras tremiam como se tivessem vida própria.
Aí começou a ficar difícil. A casa já cheirava à carne, à coisa podre. O vizinho bateu na porta uma vez. Eu fingi que não era comigo. Ele nunca voltou.
Vomitei no espelho depois de dois dias sem comer. A frase que saiu era do sonho: “Ninguém limpa as palavras antes de engolir.” Desenhei com o que regurgitei. Usei a língua como pincel.
Cortei as unhas até o sabugo. Escrevi arranhando o chão. Peguei o alicate e comecei pelas pontas. Cada puxada era um estalo seco, seguido de uma onda de dor que subia pela espinha. O sangue brotava em linhas finas, se espalhando entre os dedos. Quando arranquei a do dedão, quase desmaiei. Usei a unha como pena, a base ainda molhada de carne e sangue. Tingida, escrevi meu nome com traços tremidos, mas inteiros. Era a minha viva.
As feridas começaram a cicatrizar rápido demais, então eu arrancava as crostas com pinça, guardava num potinho. Mastigava com os dentes até virar pó. Espirrava esse pó nos cantos da sala. Letras secas. Fragmentos.
Já não dormia. Não falava com ninguém. Tranquei a porta, quebrei o celular. Só sobrou eu e o que tinha dentro de mim. E isso precisava sair.
ei a me amarrar na cadeira pra não fugir de mim mesmo. O suor virou rima líquida. Escrevi com as costas molhadas, com os pés, com o que ainda se mexia. Uma vez escrevi uma carta com o nariz sangrando.
Chamei de "correspondência interna".
A carne perdeu o gosto. A pele já não doía. A tesoura virou extensão da mão. Cortei a orelha esquerda por achar que ela ouvia demais. Marquei o contorno com uma caneta. Cortei com a tesoura de costura, dente por dente, o som era de cartilagem se partindo. Gritei com a boca fechada. O sangue escorreu pelo pescoço, colando no ombro. Modelei a parte cortada num pequeno busto com cola quente e cabelo meu. Chamei de "ruído petrificado".
Faltava o final. A última entrega. A obra completa.
Me despi, sentei no meio da sala. Peguei o estilete. O velho, enferrujado. Cortei a língua. Devagar. Vi o músculo pular, vi o sangue voar como confete de despedida. Escrevi as últimas palavras cuspindo, cada sílaba virando poça.
Depois enfiei os dedos na boca. Três deles. Um por estrofe. Um por lembrança. Um por não saber como terminar.
A última palavra foi “obrigado.”
Escrevi com o que sobrou do osso.
Deixei o celular gravando, escondido dentro da gaveta. A voz tá fraca, mas dá pra ouvir:
> “Se você achou isso tudo, parabéns.
Eu fui artista até o fim.
Não era sobre fama, nem aplauso.
Era sobre sentir. Fazer sentir. Nem que fosse nojo, repulsa, agonia... isso ainda é arte.
Eu não tinha mais nada. Então eu dei tudo.
Se você for escrever alguma coisa depois de ver isso, escreve com o corpo também.
Escreve com tudo.”
Agora deitado, morno, ainda suando, olho pras paredes e vejo cada parte de mim.
Não deixei um livro.
Deixei meu corpo escrito.
![Um corpo de poesia (+18)-[C]
[ICU]Não espere nada leve daqui, cuidado...
[C]
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Comments (2)
Gostei da imagem do fundo, o zumbi de a volta dos mortos vivos.
Boa boa, vlw.