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Sangue e desejo | O medo em Drácula, de Bram Stoker

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sed 11/01/24
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   Quais são, leitor(a), os medos primordiais do homem? Inevitáveis aos tempos de transformação? Ora, se algo constantemente o persegue, desde o primeiro respirar ofegante, é o desconhecido; a ameaça máxima à psiquê e ao bom senso. Se pensamos, com repúdio, no Conde Drácula, com sua figura esguia e sua monstruosidade intrínseca, pensamos, também, em sua estranheza. Mais do que um conto de vítimas ensanguentadas, temos, semelhante a "Frankenstein", uma era de uma civilização hesitante sobre a própria criação; assombrada pelo progresso e pelo "Estrangeiro"; covarde e afastada. Publicado à beira de um novo século, em 1897, o romance, escrito por Bram Stoker, nasceu na prosperidade do Império Britânico, após a industrialização, a expansão colonial e as maravilhas da ciência; essas novidades naturalmente trouxeram, afinal, temores que o progresso não pôde inibir: nosso querido vampiro é mais do que um símbolo à aristocracia excêntrica, é o estrangeiro envolto em ameaças, uma personificação dos medos vitorianos; rodeado de trejeitos alienígenas, sotaques curiosos e, carregando um "desconhecido" além das fronteiras inglesas, é um ataque à familiaridade, à tradição e, por extensão, à própria humanidade. Trata-se de um predador, de um manipulador, cuja estrangeirice, os costumes antigos e o anseio pela vida escancaram a fragilidade essencial da Grã-Bretanha: o que resta se a pureza cultural, tão bela, for diluída pelo mar do estrangeirismo? Oh, viajante, que tragédia à nobreza! E se Drácula é uma existência exótica, é também uma que se adequa, ligeiramente, ao padrão; uma cuja imortalidade é mais um azar do que uma bênção; que transgride quaisquer heranças. A obscuridade, suja, ataca o avanço; tal é o terror: a criatura, representante das lendas e das superstições, corrói o mundo industrial e científico.

   O romance, de estrutura epistolar, com sua coleção díspar de cartas, diários e telegramas, é chamativo; sua natureza mística é conflitante com a atmosfera científica e com a formalidade; a superstição, como uma aranha, tece suas sutis teias no lar dos bons costumes. Se a tecnologia, maravilhosa e prática, soa frágil, e a fé, que tanto alavancou a humanidade, soa inútil frente a um mal que não pode ser compreendido, a sociedade colapsa. Frequentemente, obcecamo-nos com os limites humanos, não é? Quais são as nossas pretensões? O quão válidas são? A morte é o fim inevitável à ambição? Dos papéis de gênero ao livre-arbítrio, sentimo-nos, leitor(a), desconfortáveis quando algo ameaça o comum; os estereótipos que nos apegamos e valorizamos. Essas são as ações de nosso Conde: infiltrar-se no conhecido, mesclar-se, fingir-se e, ao fim, contaminá-lo; e qual símbolo é mais apropriado ao contágio, se não o sangue? Suas presas encerram a moralidade e a fisicalidade; retiram o que há de mais natural. Bram Stoker não nos faz, ao fim, questionar as razões de um vampiro, temer seu funcionamento interno ou suas diferenças em relação ao homem, faz-nos confrontar as águas da intimidade. O medo é a corrupção da pureza; o desvanecimento da identidade; o monstro que se apodera do que há de, supostamente, belo e inocente. Se o Conde assusta, é porque, de modo perturbador, incompreensível e distante do que esperamos, é "humano, demasiadamente humano". Acompanhe-me, viajante corajoso, vamos desvendar, com minúcia, as razões pelas quais o vampiresco, com a mitologia estabelecida, inquieta-nos tanto.

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"Pois, de que lhe valeria viver dois mil anos, e não poder desfrutar a sua prosperidade? Afinal, não vão todos para o mesmo lugar?"

"Todo o esforço do homem é feito para a sua boca, contudo, o seu apetite jamais se satisfaz."

"Eclesiastes"

   Oh, a imortalidade! A fantasia, como a superforça e a manipulação do tempo, máxima do homem; a bênção que diferencia o naturalmente "Divino" do carnal; do preso às amarras cruéis da vida. Se o viver, entretanto, é distorcido, onde reside o seu significado? "Drácula" não nos postula uma imortalidade abençoada, tampouco uma de prazeres e ações justificáveis, mas uma pecaminosa, uma aberração que desafia o nascimento e desrespeita a morte; o espiritual e a fragilidade despedaçam-se. O Conde é uma personificação monstruosa da inquietação: eterno, oposto à naturalidade, um crepúsculo entre estados profundamente subentendidos, como a vida e a morte; sua atemporalidade, porém, sustenta-se pela predação e pelo desvio da vitalidade; não agrega, somente destrói e se beneficia do caos, remetendo à exploração desenfreada de seu entorno. E se o domínio sobre a natureza, com a justificativa do bel-prazer científico, trazer-nos-ia um reino melhor intocado? Mas o aprendizado não cabe ao homem! E a teoria evolucionária é sua própria lâmina; se a ambição leva-nos à subversão da morte e da natureza, não se vê a glória, mas a erosão do humano; a monstruosidade infindável.

   A imortalidade de Drácula não lhe é fonte de sabedoria, nem uma evolução para a vida, é o estado que o isola, que o torna, em última instância, uma criatura desprezível e que nos apieda; alguém devotado à podridão e distante da compaixão; incapaz de sentir-se presente entre os humanos. Desvinculado dos ciclos mortais e das preocupações espirituais, o Conde é mais um predador do que um indivíduo tangível; sua vida não a de um abismo imóvel de depravação que consome a si; interminável, pois o estado de "morto-vivo" o aprisiona em sua própria fome insaciável; os devaneios são tão duradouros quanto sua "não vida". Se os ingleses, implacáveis ao progresso, pensavam que se libertariam das limitações e dos antigos costumes, a existência do antagonista é a prova cabal do contrário: o que é viver, despojado de sua escassez? Estripado de seu propósito visível? Desejar e consumir; entediar-se e possuir; os ciclos inúmeros de uma existência à mercê da arrepiante e egoísta ansiedade humana: separar-se da naturalidade a fim de eternamente prender-se à carnalidade; um inferno vivo, angustiado, dia após dia, por uma alma predatória. Fome e mais fome.

    Sabe-se que os vitorianos, leitor(a), "gostavam" de idealizar a morte; tratavam-na como um rito sagrado e de indispensável respeito; a transição final à paz e o encerramento das agruras terrenas. A morte era, como é comum à percepção religiosa, a agem ao eterno e o ato que preparava a alma à despedida serene; a culminância irônica da trajetória humana e a compensação aguardada. Qual seria a reação, se não a aversão, da negação absoluta desses ideais? De um oco definido por uma vontade incalculável? Tal é o vampiro. Não é somente um contraste à morte, mas um ser cuja existência, incumbida de um princípio inacabável, vê-se entre a cruz de seu túmulo e o oxigênio externo; a inversão máxima do sonho do homem: a eternidade, contrária à aspiração moral, torna-se um pesadelo! O sonhar do paraíso é reduzido a rastejar impiedosamente na Transilvânia. É uma zombaria à agem pacífica e ao calor do viver, substituindo-os por uma infinitude agressiva; uma contaminação do corpo e, essencialmente, do espírito. Se a sociedade, tão altruísta, apega-se à santificação e dá uma finalidade ao fim, a não morte (o Drácula de Schrödinger) é a destruição de seus fiéis valores; o destino aos que, amaldiçoados, recusam-se a abraçar a fatalidade. Não há, ao fim, um símbolo mais apropriado! Stoker, frente a um mundo intoxicado pela ambição, retrata-nos a consequência de dobrar a natureza à vontade do homem: a adulteração do natural é vã; quanto mais se foge à carnalidade, mais se destrói a espiritualidade. A ambição, em vez de nos elevar, reduz-nos a criaturas incapazes e escravizadas por um apetite absurdo; aliena-nos de nossa humanidade. A reverência à ordem natural, quando destituída da imaginação, não se trata de um triunfo, mas de uma, como o Conde, maldição: do que vale caminhar eternamente, se não podemos, leitor(a), verdadeiramente pertencer? Se não podemos curar? Se a existência é condenada a destruir? Ah, o quão assustadora é a própria humanidade quando distorcida de quaisquer propósitos.

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   Costumamos associar, com nossa bagagem secular de lendas e superstições europeias, o vampirismo meramente ao sobrenatural; surpreendemo-nos com os contos de vampiros romantizados ou puramente bestiais, mas as coisas, em "Drácula", são simbólicas: o sobrenatural é o contágio cultural; as forças externas que, pouco a pouco, infiltram-se nos tecidos do hábito e do conforto; a lenda não é mais do que a ameaça à moralidade: o sangue ardente, afinal, sustenta-nos, e os poderes do Conde, capazes de corrompê-lo, são o reflexo apropriado à destruição corporal e à ansiedade vitoriana. Da tuberculose até a sífilis, doenças e pragas devastavam a pobre população, e a vulnerabilidade do sangue é a vulnerabilidade da própria vida quando oposta à decadência sorrateira. Sugiro, então: o vampirismo, com sua mordida dolorosa, que infecta, corrói e influencia a biologia, é o terror do contágio imparável; da doença que apodrece a alma e não distingue o vivo do morto; do mal que fere a santidade do corpo e, finalmente, do país inteiro. É um caos que espreita na escuridão, semelhante ao morcego, o qual se espalha nos cantos mais belos e polidos da sociedade; os aristocratas findam-se. E a quem é mais lógico que a perdição, portanto, chegue com antecedência? Oh, pobre Lucy Westenra, a primeira vítima, uma jovem cercada de promessas amorosas, cuja inocência nos encanta! Enquanto o Conde a despoja de sua vitalidade, suas mudanças físicas e psicológicas a põem como um emblema de impureza e transgressão sexual: a outrora bela moça, de expressões inocentes e vontades resguardadas, é substituída por uma criatura de anseios infindáveis; sua palidez se perde por uma força não natural; o grotesco a apodrece. Não há um estigma mais vitoriano, leitor(a)! Fala-se e fala-se sobre a pureza social e sobre as restrições, principalmente as exigidas para as mulheres, e a metamorfose de Lucy é mais do que, como sugerido, uma mudança em sua fisionomia; é a predação e a malícia do caráter, é o desejo desvinculado do costume. Esse "contágio", por natureza, é quase erótico, pois acrescenta diretamente à ansiedade feminina; usa e abusa de corpos socialmente julgados como "frágeis" e os torna suscetíveis a uma corrupção que desestabiliza a união. O vampirismo é o colapso social; o domínio da impureza temida e julgada.

   Pergunto-te, leitor(a), em vista da transformação de Lucy, como uma sociedade, crendo-se fielmente estruturada e espiritualizada, trata a degeneração da alma? Ou melhor, o que se percebe como tal? "Drácula" também nos responde! E é claro: com extremismo. Ora, o que seria mais justificável do que uma estaca no peito, uma decapitação? Esse é o tratamento à jovem, e não é de se espantar: é a purgação ritualística. Os homens são os executores da retidão moral; os fiscais que salvaguardam a santidade; que expurgam a comunidade. Se o vampirismo é o fruto proibido que corrói a feminilidade, é também o despertar da obsessão masculina; da vontade incessante de regularizar os corpos da mulher ou de regrar suas personalidades, seja o meio brutal ou não. A inocência deve ser preservada; a pureza é inseparável da sacralidade. Qual é o destino de uma sociedade pomposa, afinal, se as propriedades de sua virtude são violadas de modo irreversível? Se a "infecção" física é, também, uma moral? Esse é o Conde, o esquisito estrangeiro; caminhante de terras exóticas e enervantes, chega às bordas inglesas e as muda; traz consigo o desconhecido e ameaça a ordem britânica. Não é somente sobre o contágio pessoal, mas o nacional, sobre o fruto proibido do colonialismo: o medo da poluição cultural, de que a pureza britânica, assim como a feminina, possa ser sobrepujada pelo "Estranho". O vampirismo nada mais é do que o "Estranho" que afeta o coração do império e o expõe ao veneno das culturas que visa dominar; a ansiedade concentrada.

    Em sua empreitada por Londres, o vampiro se instaura nos desavisados e pensa em seus estratagemas. A imagem que prevalece é a da Inglaterra como um campo infestado e maldito de covis sangrentos; a corrupção, porém, não provém de um exército, mas de si. Não se erradica facilmente a influência dessas forças, tampouco as doenças que se grudam na população; a cultura progressivamente some e o estimado idealismo inglês, alinhado à noção prevalente de superioridade, torna-se a arma que faz cada personagem, essencialmente os masculinos, dançar contra a fragilidade de sua própria sociedade. O vampirismo se torna uma crítica à complacência, o lembrete de que o humano, por mais impetuoso, não é imune à força descontrolada. O que nós temos, ao fim, é o retrato fidedigno dos temores de um contexto: as doenças, a podridão, a falta de educação ou de cultura, e todos se misturam vorazmente, tão voláteis quanto o próprio sangue que corre. Se a imortalidade é o desrespeito à vida, a monstruosidade — personificada pelo vampiro — representa o desrespeito à identidade, desfazendo não só o corpo, mas toda naturalidade que cegamente confiamos: a ética, a alma e a espiritualidade. Nenhum país, por mais unido ou belo que seja, por mais rodeado de esplendores militares ou de firmeza, é invulnerável à corrupção, à morte e ao esquecimento.

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"O século XIX já vai bem adiantado. E, no entanto, a não ser que meus sentidos me enganem, os séculos antigos possuíam, e possuem, uma força própria que a mera 'modernidade' não consegue destruir."

— "Drácula", de Bram Stoker

   É comum, em uma época de reinvenção e de industrialização, que os costumes antigos, respeitados e enraizados no berço da sociedade, confrontem-se com a novidade; e se o progresso é marcado por uma fragilidade intrínseca e um posterior desuso, seja por ansiedade ou por teimosia de uma parte da população, suas lacunas são facilmente visíveis ao inimigo. Desde telegramas e fonógrafos até máquinas de escrever, invenções para facilitar a comunicação e o cotidiano estão por toda a história; a crença de que a tecnologia era o caminho à iluminação dava seus primeiros os — nada tímidos — e mostrava-se, na luta contra o animalesco e o primitivo, como uma vitória da ordem; uma maneira de encapsular um mal outrora invencível e incompreensível. Sejamos bem-vindos à revolução industrial! Telegramas incontáveis nos transmitem os detalhes úteis; fonógrafos registram tudo com uma rapidez caótica para a época; os esforços dos protagonistas, principalmente os de Jonathan Harker, formam supostamente uma defesa competente cujo conhecimento "transportado" é a salvação coletiva. As transfusões, embora sinalizem a fraqueza que nos aflige, são tratadas como se fossem as magias de um paladino; as ambições humanas corriam a todo vapor e, frente ao sonho vitoriano, até a morte parecia só mais um reino a dominar-se! Mas toda presunção, leitor(a), há de perecer; toda tentativa de subjugar uma força natural há, também, de temer o mal personificado; de entender o peso da própria atitude. Nada os conforta, com o ar do tempo, contra o Conde! O que é a prepotência do homem contra uma criatura que antecede a razão? Contra algo que é antinatural em relação a quaisquer limites? Não há como conter a impureza das veias transferindo-a, tampouco as mensagens escritas ou registros são capazes de captar os temores primordiais; a ciência é simplesmente insuficiente; a fenda entre as luzes da evolução e a realidade do medo antigo é exposta. Antigo e novo; moderno e tradicional; esses contrastes não são atípicos à ficção do século XIX, e Stoker nos evoca o necessário: será a lógica a possível resposta à irracionalidade? Não! A razão é somente um artefato incapaz de penetrar a escuridão; é a exposição da falácia: se os vitorianos se orgulhavam da razão e do progresso, o que há de mais "antigo" os destrói facilmente.

   Se a razão não é eficaz contra o misticismo e se o idealismo vitoriano fracassa na empreitada contra o grotesco, o que nos resta é a aceitação e o culto à lenda; o triunfo dos mais supersticiosos. Quais as relíquias, leitor(a), populares contra os terrores? Ah, o imaginário popular sabe bem! Encha o lobisomem de balas de prata e abuse de crucifixos, água benta, espelhos e alho para desvendar o vampiro. Embora seja irônico, não é a lógica que, ao fim, triunfa e salva uma sociedade pautada no progresso científico, mas a fé. Tal verdade não pode ser mais retumbante: algumas dúvidas são maiores do que a própria ciência; não nos esqueçamos de Fernando Pessoa: "O mito é o nada que é tudo". Aquilo que desde o respirar inicial dá tremedeira ao homem é inalcançável pelos prazeres da racionalidade; são frutos espirituais; causas e feridas da alma. Ora, o que há de errado na imensidão do mar? No desconhecido? O que nos esfaqueia e nem podemos detectar? A irracionalidade é a campeã do medo. "Drácula", então, é um trabalho paradoxal: apresenta-nos a ascensão da tecnologia e as maravilhas da modernidade, enquanto, também, ressalta a nossa dependência de ferramentas e discursos religiosos. É verdade, sim, que ganhamos, graças à ambição, a expansão da comunicação, maior facilidade e métodos de sossego, mas o custo é o despropósito: a desesperança no teísmo ou na superstição básica; a eliminação do tato espiritual. Quando se trata de enfrentar o mal, a solução, talvez, seja abraçar a mesma aberração: reconhecer que não se pode exorcizar o demônio com a razão; a fé é o que prevalece.

   O que se sugere em "Drácula" é o equilíbrio: a modernidade não deve sobrepor o misticismo, tampouco o sobrenatural deve ser o guia absoluto do viver. Vemos em Van Helsing, por exemplo, o triunfo da audácia: um homem que, recusando a supremacia da ciência na Inglaterra, procura por uma síntese entre os polos distintos; que respeita o academicismo sem se desprender ou inutilizar as tradições e as superstições. Se a medicina evolui e nos apresenta um novo mundo, não é razão o suficiente para descartar o crucifixo e desacreditar na restauração pela fé; é preciso reverenciar o mistério e entender os limites da racionalidade. Enfrentar o vampiro é sobre, leitor(a), abraçar o que há entre o ceticismo e o temor; respeitar as vontades de nossos anteados e guiar as luzes do futuro. Tal é o pecado vitoriano: a incapacidade de conciliar o conservadorismo ao progresso rápido. Dessa curiosa interdependência presente em todo o livro, hemos de enxergar que a rejeição do ado não é o caminho, nem o apego à tecnologia, mas entender o valor de ambos na construção humana. Uma sociedade sem espiritualidade é funcional? Uma que ignora forças primordiais? Alguns diriam que sim, porém não parece ser a inclinação de Stoker. Reconheçamos que alguns segredos, afinal, são duradouros; o futuro sempre é observado pelas atitudes do ado.

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"Eram os olhos de Lucy na forma e na cor, mas, em vez das órbitas puras e delicadas que conhecíamos, eram impuros e cheios de fogo infernal. Naquele momento, o que restava do meu amor virou ódio e repulsa. Se era preciso matá-la, eu o faria com um prazer brutal."

— "Drácula", de Bram Stoker

   Pensemos, então, sobre as discussões deste blog: o teor de "Drácula" é definitivamente moralizante! Fala-se do vitoriano e critica-se o comportamento; as revelações, independentemente de sua natureza, são feitas: o vampirismo é erótico; as repressões são enaltecidas; as distorções são expostas. E se tudo brilha sob as palavras de Stoker, é também graças à perspicácia de seus personagens e à diversidade de suas expressões: oh, Lucy e Mina; oh, Jonathan e Van Helsing, todos tão trágicos, dançantes diante da petulante sombra de um estrangeiro maligno. O Conde, com seus maneirismos, ataca o que há de mais puro nos medos vitorianos: a inocência e a feminilidade; a sexualidade que, descontrolada, ameaça o bom senso impregnado nos homens. Ora, o que é mais temeroso do que uma feminilidade desinibida? Do que uma transformação radical e impura? Do que os glóbulos outrora inocentes dando lugar à predação mais vil? Nós vemos essa violação em Lucy: seu ideal ivo, com o vampirismo, incorpora um anseio transgressor; quanto mais corrupta pelo sangue, mais se retrata como moralmente comprometida, em vez de uma mulher fisicamente doente. O desprezo não vem somente de seus olhos infernais, mas de sua personalidade proibida e de seus hábitos contagiantes; do sumiço da mulher meiga e complacente. O que resta, afinal, se a mulher, consumida pelo desejo carnal, é incontrolável? Se seu apetite voraz a retira de seu papel de obediência? De mãe e filha? Não é surpresa que a transformação não seja física, porém espiritual; o "reservatório de virtude" (ao olho masculino) torna-se a fonte da desordem. Ah, que ironia.

   As respostas, obviamente, não são bonitas. Os homens enlouquecem, esquecem quaisquer amores e decidem, seja de forma drástica ou não, retomar a posse: uma estacada violenta; um alho intrusivo; lâminas fatais; golpes estonteantes; um show de horrores. Se a autoridade masculina é profundamente desafiada, a consequência é o caos "justificado" pela moral: para salvar a feminilidade, eles a erradicam, traço por traço; seus sonhos indecentes são esmagados e a pureza é reinvidicada pela bestialidade. Resta à memória a imagem do que se foi: o belo sorriso de uma moça antes respeitada; os gentis trejeitos de uma moça outrora inibida. É paradoxal: a sociedade estima as mulheres e, à vista de seu "papel definido", espiritualiza sua atitude, mas também enxerga o feminino como incapaz e frágil, como se necessitasse, a todo instante, de uma proteção externa, de uma validação e, quando conveniente, de uma coerção física. O medo de que, se a rebeldia for posta em ação, jamais será contida novamente; o temor de uma independência inaceitável. A influência do vampiro e a transgressão de seus corpos e de sua autonomia assustam: faz com que percam o pertencimento a quaisquer ciclos; julgadas pela humanidade, tachadas como impuras devido às ações do causador de sua destruição e à mercê de suas próprias monstruosidades. O idealismo vitoriano é imaculado, e a corrupção pelo sangue as retira do "domínio" de seus maridos, subverte as regras e, por fim, esmigalha a governança. Enquanto retira-lhes inevitavelmente a piedade e a humanidade, também ironicamente as liberta, porém de nada adianta, porque a morte é o único caminho plausível à transgressão.

   Em todos os sentidos, o vampirismo é a ruptura: a humanidade se esvai, a mortalidade se compromete e a inocência dá lugar à impureza. Ah, leitor(a), o que nos causa mais terror do que a desintegração de nossos valores mais íntimos? Todos nós temos os nossos limites morais, nossas concepções e nossas construções inerentes ao contexto social. Qual é a reação apropriada quando uma força as confronta impiedosamente? Quando a fragilidade do que tomamos como garantido é revelada? É sombrio, inegavelmente! Mas também é o que nos fascina em "Drácula": ele não somente corrói suas vítimas, liberta-as e as distorce, despertando-as contra o mundo e os valores aos quais se apegaram; todas as cortinas levantam-se. As maiores supressões sociais, enfim, são inutilizadas.

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"Isso não me basta. Aqui sou nobre. Sou um boiardo. O povo comum me conhece como seu senhor. Mas um estrangeiro em terra estrangeira não é ninguém. Os homens não o conhecem, e não conhecer é não dar importância. Ficarei contente em ser como os outros, de modo que ninguém repare ao me ver, ou pare de falar se ouvir minhas palavras, 'Ha, ha! Um estrangeiro!'"

"Drácula", de Bram Stoker

   Quando assistimos ao filme de 1931, deparando-nos com a interpretação excêntrica de Bela Lugosi ao Conde, e também compreendemos o terror do romance de Stoker através da leitura e de estudos acerca, vemos que algo é — e sempre será — prevalente sobre o vampiro mais famoso que há: a estranheza, as diferenças culturais e, claro, o estrangeirismo; as características definitivas de sua monstruosidade. Os malditos frutos colonialistas, leitor(a)! Nocivo, incompreensível e desconhecido, tal é Drácula; a personificação de pavores primais. Não é somente uma teimosa sanguessuga, mas a resposta apropriada ao pesadelo cultural: a força britânica vem da dominação! Todavia, se a opressão de diversas culturas é o combustível de seu poder, que outro medo é mais inevitável, senão o da chegada de manias imprevisíveis? Da chegada de novidades indesejadas? E que novidade é mais indesejada do que a corrupta e ameaçadora? Oh, o homem afirma sua identidade, porém teme que algo a ponha em cheque. Das sombras da Transilvânia até as pálidas ruas vitorianas da Inglaterra, o vampiro contraria a história da civilização: o império responsável por centralizar-se no mundo — com invasões — é, de repente, infiltrado; uma doce colonização inversa, como diriam alguns. O Leste chega à alma do Oeste e traz consigo sua bagagem; o sotaque inquieta, e os costumes soam ultraados; a perturbação se instaura e a segurança se esvai. As fronteiras jamais foram, afinal, intransponíveis; as mãos da Inglaterra podem cobrir toda a Terra, mas isso é insuficiente para garantir que os subjugados, um dia, não retornarão. E assim nasce a tremedeira inescrutável.

   Imagine o inglês idealista: se nascemos, leitor(a), em tempos áureos e nosso país, distinto dos outros, é o arauto do progresso, um orgulho naturalmente nos apodera; os nossos valores enraízam-se na cultura e nosso respeito se firma nos valores fixos dessa vivência enclausurada. Algo, entretanto, é inquietante: todo tempo de paz há de ser findado; toda aparente calmaria precede uma tempestade. A ansiedade, então, nasce no coração puro e moralista. Ah, o misticismo... Tão sorrateiro, tão impune, corre pelas vielas britânicas. O Conde não é assustador por sua fatalidade ou por seus dentes afiados, mas porque é um mistério e carrega tradições alienígenas; é uma questão mais racial e cultural do que racional: a simples e conhecida xenofobia. Uma criatura distante pode, com meios inexplicáveis, dar um fim à pureza — e o faz; a tecnologia, como dito, é inexpressiva à ameaça, e a superstição que tanto desprezo recebeu é a cruz que os salva da dissolução. O "Resto" — do planeta —, na obra de Stoker, não é uma porção de terras insignificante, é a oposição absoluta do pensamento inglês: tudo que é externo abriga crenças antiéticas ao progresso; se não fossem primitivos, não seriam dominados. O externo se torna o réu do interno; o terror que os desmantela vem de dentro. Ah, digo novamente: que ironia.

   Temerosos, perguntamo-nos: há solução para tal medo? Como fugir do desconhecido? Para os britânicos, assumindo, novamente, a colonização: os personagens, desesperados, vão à Transilvânia. A expedição ao inimigo é o instinto de retomar o controle; de eliminar o estrangeirismo pelo único meio que conhecem: o da imposição de seus métodos e de suas culturas. Não é bela a mentalidade colonial? Assim como seu país istrou colônias e se impôs sobre a Terra, eles buscam impor seu domínio sobre Drácula; uma tentativa de estacar o vampiro pelas costas — se é que o termo é plausível. A viagem é ao coração trevoso; ao território onde a influência é máxima. Se conseguirem eliminar sua origem, talvez consigam eliminar o perigo que ela representa. As ameaças devem ser confrontadas diretamente, pois a restauração da pureza e da supremacia exige a supressão de todo o externo. O mundo é o inimigo. Mas do que adianta, questiono, glorificar a própria superioridade, gabar-se das conquistas e dizer-se invencível, se a insegurança, no fim, é assombrosa? Se a influência do vampiro, perpétua, é invencível? Se é um pedaço vulnerável da alma de todos? Ah, o medo do homem... Eterno e infindável.

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Sangue e desejo | O medo em Drácula, de Bram Stoker-[C]╭══•┈─⭑─┈⟅⟅ 𝅭𝅭 🦇 𝅭𝅭 ⟆⟆─⭑─┈•══╮
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   O fruto gótico responsável por inúmeros fetiches e por clichês da literatura, a obra de Stoker está além de suas aparências: não é um folclore banal, mas a personificação escrita de toda repressão inconsciente de uma sociedade; do contágio à xenofobia, o vampiro é uma exploração intrigante da ansiedade de uma era. Cada uma das características deste blog se entrelaça e forma o mal-estar incorporado, o vilão que definiu gerações; nocivo à mente e ao físico; eterno e impiedoso; civilizado e grotesco; monstruoso e profundamente humano. Quão inquietante é, de fato, Drácula! E que não reste dúvida de que, embora não mais confinada ao seu contexto, a criatura continuará a nos definir, fascinar e atormentar. Ao lermos, nossas próprias incertezas vêm à tona, e a perturbação nos acomete. Não sabemos, na verdade, se devemos nos apiedar ou nos enojar com o que se forma em nossa imaginação; se as palavras de Stoker são elegantes ou condenadas. Sob a fachada do bom moço, sempre há um abismo irresistível que distorce nossos limites; uma vontade que causa um interesse voraz pela literatura de terror. Queremos entender, por mais repulsivo, o que nos afasta, não é? Gostamos da sensação inebriante; do coração rápido e pulsante; de fugir da realidade para as sombras do que virá. Que assim seja!

#ScaryLinks

#ContentsOTX

— Referências

I. "Dracula's Biggest Enemy: Part II"

II. "Immortality In Dracula: Dialectics Of Ambiguity"

III. "The vampirisation of the novel: narrative crises in Dracula"

IV. "An Unseen Invasion: Vampirism as Contagion in Bram Stoker’s Dracula"

V. "DRACULA Diving Deeper"

VI. "Ancient and Modern in Dracula"

VII. "The Representation of Time, Modernity and Its Prehistory in Dracula"

VIII. "From the Land Beyond the Forest to the Shores of England: The Merging of Science and Superstition in Stoker’s Dracula"

IX. "Stoker's Vampirization of the Victorian Woman in Dracula"

X. "The Women in 'Dracula': A Feminist Perspective"

XI. "Virtue and Sexuality in Bram Stoker’s Dracula"

XII. "Bram Stoker’s Criticism of British Foreign Politics in Dracula"

XIII. "Imperialism, Power, and Dracula"

XIV. "Analyzing the theme of reverse colonialism in Dracula."

XV. "Post-colonialism in Dracula"

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Muito bom dá pra notar o cuidado que você teve pra deixar tudo certo lendo bem pouco do textos

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1 Reply January 16

agradeço pelo carinho e pelo comentário

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1 Reply January 24

Ufa! Confesse que você não se esforçou muito para me descobrir. Como estou generosa, darei mais uma dica para ajudar a descobrir o meu amigo: ele foi descrito por alguém próximo a ele como chat* pra caralh**

Se isso não te ajudou em nada, vamos para a continuação do caça tesouros.

Dica: 4: eu sou uma menina casada, sabia?

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3 Reply December 24

Incrível!

Um dos meus livros favoritos

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1 Reply December 14

um livraço. obrigado por comentar, café, valorizo demais

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1 Reply December 14

**"Eu cruzei oceanos de tempo para encontrá-la."**

**"Eu te amo demais para te condenar à escuridão eterna."**

Ótimo blog mano parabéns

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1 Reply December 12

"O amor é mais forte que a morte."

muito obrigado por ler, kuroko. fico feliz

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1 Reply December 13
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