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Miau ( Conto 3 - Prólogo de “Calamidade”)

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Escritor 3 days ago
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Ao longe, um chiado estranho faz suas orelhas se moverem, buscando a origem do som — mesmo que você não o compreendesse. Você deixa o conforto da sua quentinha caixa de papelão e segue em direção ao ruído. Espantado, bate com a patinha esquerda no aparelho de som jogado no lixo:

— Interrompemos esta programação para um aviso importante — uma voz ressoa, mas você não entende.

— Um corpo celeste atingiu o centro da cidade de Breu Branco. O impacto danificou a arela e prédios históricos. A polícia local está evacuando o local e buscando sobreviventes. As imagens são chocantes... Recomendamos aos ouvintes que não visitem o local.

O aparelho silencia. Você boceja e decide voltar para sua caixa.

Isso foi um aviso, caro leitor…

✦✦✦

Miau

Seus olhos se abrem assustados com uma claridade repentina que logo desaparece nos céus noturnos, dando espaço a um estrondo distante. O chão estremece levemente, e você sente algo úmido cair sobre sua pelagem branca — primeiro devagar, depois com intensidade, conforme os céus eram rasgados por mais daquelas luzes estrondosas. Você se levanta da grama encharcada e segue sua caminhada em busca de um lugar onde não se molhasse.

Sentando-se abaixo de uma rede, você espera aquele homem aparecer. Ele era gentil: quando te via, lhe trazia restos de comida e acariciava seu pescoço antes de se deitar na rede com sua revista de artigos esportivos para aproveitar a noite. Tinha cheiro de madeira e sempre estava coberto de serragem. Agora, você o vê sentado no chão, imóvel, segurando nas pernas a cabeça que normalmente ficava acima do pescoço. Já fazia dias que ele não se movia.

Ninguém naquele lugar se mexia há dias. A mulher que sempre brigava com você toda vez que entrava na casa agora estava dividida: a parte inferior sentada no sofá, o restante caído no chão. As crianças que te adoravam nem podiam ser encontradas. Em seus lugares, apenas uma marca marrom, seca, no estofado. Sobre o carpete havia uma terceira pessoa, que você não reconhecia. Usava uma blusa branca parcialmente tingida de vermelho. Estava de joelhos, virada para a porta, enquanto sua cabeça repousava alguns metros mais atrás.

Temendo os sons da tempestade, você adentra a casa. Suas orelhas pontudas e peludas se mexem, procurando por algum som distinto das gotas que banhavam a cidade escura. Vagando pelos cômodos, sobe sobre a mesa e lambe os pratos cheios de comida azeda, sobre os quais moscas pairavam. Mas então, um cheiro surge. Sua pelagem se arma. Sua cauda chicoteia o ar. Seu íntimo grita para você deixar o local imediatamente — e você obedece.

Saltando por uma janela aberta da cozinha, parte em meio à chuva. Caminha pela rua, atento a cada som que surge ao redor. A grama encharcada se amassa. Algo rasteja por ela. Você dispara, sem olhar para trás.

Você se abriga sob um banco, em frente a um lugar onde crianças costumavam brincar alegremente. Elas sempre paravam para te acariciar, e você jogava seu charme, se esfregando em suas pequenas mãos. Mas já fazia dias que ninguém aparecia ali. Dias que você não era alimentado pelos seus donos. Dias que a cidade mergulhou em um completo silêncio.

Deita a cabeça sobre as patas e fecha os olhos. Embora cochilando, ainda ouve o som úmido que te acompanha desde que deixou aquela casa. Mesmo com o vento contra você, aquele cheiro ainda está presente. Seu íntimo continua em alerta.

Suas orelhas se erguem. Você corre. O som está mais próximo. Sua pelagem se arma novamente. Encarando o alto de um poste com agressividade, a água já não te incomoda, mas aquele cheiro... aquele cheiro sim. Você não entende por quê. Mostra os dentes. Exibe suas garras. Aquilo ainda está ali. Você sente.

E aquilo responde à altura. Emite um som abafado, um rosnado em resposta à sua postura. Você se sente ameaçado e foge. Corre para dentro de uma loja, cuja porta está entreaberta, e se esconde atrás de uma prateleira.

A porta escancara. Você ouve pegadas úmidas e uma respiração pesada. O cheiro agora está mais forte, queimando suas narinas, fazendo seu coração palpitar com violência. É isso. Isso fez os humanos desaparecerem. Desde que esse cheiro chegou, você não viu mais nenhum deles.

Você se esgueira para trás, chega a uma sala onde há uma escotilha parcialmente emperrada. Sua cabeça entra com facilidade pela fresta. Seu corpo também. Você despenca para a escuridão.

Ali, envolto ao breu, você encontra segurança. O cheiro ainda está presente, mas agora distante, menos ameaçador. Caminha pelos esgotos até encontrar uma pilha de roupas. Senta-se e começa a lamber a água da chuva em sua pelagem. Se esparrama nas roupas e tenta descansar mais um pouco... mas logo é despertado.

Aquilo te seguiu até ali.

Você encara a escuridão enquanto recua. O cheiro se aproxima com uma velocidade absurda. Você se arma, mostra suas garras, está pronto para o confronto — mas seu instinto grita: não é uma luta justa.

Então, você ouve os apressados e familiares. Um chiado metálico atordoa seus sentidos. Um humano. Ele a por você às pressas. Seus olhos se encontram por um segundo, mas ele não para. Vai na direção contrária à sua. E você também foge. Você nunca ousaria correr na direção daquele cheiro.

Um som seco preenche o esgoto. Abafado. Úmido. Como o estalar de um osso partindo ao meio. Depois, outro — mais molhado, mais próximo, mais final. O som do corpo batendo contra o chão encharcado é denso e desesperador. Você ouve o arrastar lento de algo pesado sendo puxado, como carne viva sendo arrastada por garras afiadas. E depois... silêncio. Nem o rádio chiava mais.

O cheiro do sangue é tão forte que parece ferver suas narinas. Ele se espalha como fumaça. Seu coração lateja no peito pequeno. Seus pelos estão completamente eriçados. Você não precisa ver para saber o que aconteceu. O som. O cheiro. O fim.

Você se esgueira pelos cantos até alcançar o túnel que leva à saída. Atravessa as grades tortas do bueiro e volta à superfície encharcada. Anda entre poças e folhas secas, com a cabeça baixa, em silêncio absoluto.

A cidade também está em silêncio.

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